III. UMA TAÇA QUE TRANSBORDA
Após passar uma década de sua vida, dos 30 aos 40, isolado na solidão das montanhas, Zaratustra se cansa de seu eremitério. Após tão prolongada contemplação e reflexão realizada longe dos homens, só na companhia dos animais, das brisas e dos montes, é como se sentisse uma ânsia intensa por diálogo e calor humano. O livro de Nietzsche inicia-se com a decisão tomada por Zaratustra de voltar ao convívio, convicto que está de ter muito a compartilhar: “Estou farto de minha sabedoria, como a abelha que juntou demasiado mel; necessito de mãos que se estendam. Quero doar e distribuir…” (Prólogo, #1).
Zaratustra, considerando-se como um potencial benfeitor da humanidade, vê como modelo o Sol que brilha nos céus em infatigável dadivosidade: o Sol lhe aparece como um símbolo de generosidade, de transbordamento, de prodigalidade, de exuberância. “Ó grande astro! Que seria de tua felicidade, se não tivesses aqueles que iluminas?” (Prólogo, #1) Diante da aurora, Zaratustra louva o Sol e se identifica com ele, numa espécie de culto pagão devotado ao Astro-Rei, cultuado como um deus por muitos povos da antiguidade (como os egípcios).
Por sua completa ausência de avareza e retenção, o Sol é um modelo para o sábio: o calor e a luz que dele emanam em tamanha profusão, através dos séculos e dos milênios, serve a Zaratustra como inspiração para seu próprio projeto de agir, dali em diante, como uma espécie de sol-humano, peregrino distribuidor de dádivas iluminadoras. E o Sol é também uma espécie de musa que destrava os lirismos, que faz com que corra o mel poético: “Do Sol aprendi isso, quando ele se põe, o riquíssimo: derrama ouro sobre o mar, de sua inesgotável riqueza – de modo que até o mais pobre dos pescadores rema com remo de ouro! (…) Tal como o Sol quer Zaratustra declinar…” (Livro III, Das Velhas e Novas Tábuas,#3, pg. 189).
Nietzsche não nos narra praticamente nada dos 30 primeiros anos da vida de Zaratustra, permanecendo misteriosas as razões que levaram-no a buscar o isolamento e “levar suas cinzas para os montes” (Prólogo, #2). A narrativa já inicia-se num momento que, pegando emprestada a linguagem budista, poderíamos chamar de pós-nirvânico, quando o sujeito iluminado sente-se impelido a dividir sua luz com os outros, tornando-se um Bodhissatva.
Dentre as Máximas de La Rochefoucauld, que Nietzsche conhecia muito bem e foram uma das inspirações para tantas de suas reflexões sobre a moralidade, encontra-se uma boa descrição do estado-de-espírito de Zaratustra nesta ocasião: “É uma grande loucura querer ser sábio sozinho.” (LA ROCHEFOUCAULD, Maximes, #231. Original: “C’est une grande folie de vouloir être sage tout seul.”)
A primeira pessoa com quem Zaratustra depara, quando inicia sua descida da montanha, é um velho eremita que percebe a metamorfose ocorrida com ele nestes seus dez anos de reclusão: é com passo de dançarino que o andarilho agora vem, desejoso de levar sua luz para os vales. “Trago aos homens uma dádiva”, diz Zaratustra ao velho, logo em seguida adicionando: “Não dou esmolas. Não sou pobre o bastante para isso.” (Prólogo, #2) Há em Zaratustra, no início de seu retorno ao convívio humano, uma sensação íntima de riqueza espiritual, de um coração mais-que-pleno que sente uma vontade intensa de ser uma “taça que transborda”. Sentindo-se desperto e iluminado, Zaratustra deseja espalhar ricas dádivas através de seus ensinamentos. Ele assim exorta seus discípulos:
“Uma virtude dadivosa é a virtude mais alta. Tendes sede de tornar-vos vós mesmos sacrifícios e dádivas: daí a vossa sede de acumular todas as riquezas em vossa alma. Insaciável busca a vossa alma por tesouros e joias, pois vossa virtude é insaciável na vontade de dar. Obrigais todas as coisas a ir para vós e estar em vós, para que venham a refluir da vossa fonte como dádivas de vosso amor. Em verdade, ladrão de todos os valores se tornará esse amor dadivoso; mas eu declaro sadio e sagrado esse egoísmo…” (Livro I, Da Virtude Dadivosa, #1, pg. 72)
Este louvor ao dom, esta vontade de dádiva, é com frequência descrito como uma virtude digna dos espíritos livres, que ao invés de desejarem apenas tomar, pilhar, receber, consumir, gastar, reter e poupar, são muito mais os pródigos disseminadores das “riquezas” que puderam adquirir: sabedorias, melodias, poesias, passos de dança e risadas… Zaratustra distingue, pois, entre duas espécies de egoísmo: aquele que elogia consiste nesta insaciável vontade de reunir em si algo de valoroso, que possa ser partilhado e doado como dádiva; aquele que critica consiste na “avidez da fome” daquele que “se avizinha furtivamente da mesa dos que dão”, com uma cobiça devoradora que é sinal de um “corpo enfermo”. A taça que transborda, de um lado, e o canudo sedento que esvazia a taça até sua última gota, de outro. No primeiro caso, a virtude decorre da abundância e da plenitude daquele que juntou em si algo de valoroso, e que então se põe a distribuir; no segundo caso, há um ávido e faminto tomar-para-si.
“Amo aquele que não guarda uma gota de espírito para si… Amo aquele cuja alma esbanja a si mesma…” (Prólogo, #4) Sentindo-se como uma abelha que juntou muito mel, ou como um sol cuja felicidade só seria completa se tivesse aqueles a quem iluminar, Zaratustra desce dos picos onde se escondeu com a intenção de falar aos homens sobre tudo o que descobriu. No entanto, logo descobrirá que seu ardente desejo de dom não encontra nos ouvintes um igualmente ardente desejo de acolhimento. Sentirá o gélido sopro da solidão e se perceberá falando para surdos.
O livro de Nietzsche poderá ser lido, portanto, como uma narrativa da busca de Zaratustra por ouvintes que o compreendam, por companheiros que o acompanhem, sendo numerosas as frustrações que o profeta-poeta sente em sua jornada. Pois, por todo o livro, ele permanecerá alguém que as massas (também chamadas por ele de “a plebe” ou “a gentalha”) não ouvem nem compreendem. De modo que Zaratustra, como seu criador, é um extemporâneo, fora-de-lugar em seu próprio tempo, incompreendido e rechaçado, sendo obrigado a construir seu ninho… no futuro!
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IV. O HOMEM DEVE SER SUPERADO
Como compreender a exortação zaratustriana à superação da humanidade sem antes compreender como Zaratustra enxerga o homem como este se apresenta a ele? Que comportamentos, crenças, valores e ritos tornam o homem que Zaratustra conheceu algo de tão enojante e desprezível?
Há no livro de Nietzsche numerosos trechos em que o tom é de “crítica social”, onde são atacadas algumas tendências culturais e classes sociais. Contra os “presidiários da riqueza”, por exemplo, Zaratustra dispara suas flechas, dardejando um tipo de homem capitalista e ambicioso que se enlameia no processo de conquistar um trono:
“Adquirem riquezas e com elas se tornam mais pobres. Querem o poder e, primeiro, a alavanca do poder, muito dinheiro – esses indigentes! Vede como sobem trepando, esses ágeis macacos! Sobem trepando uns sobre os outros, e assim se empurram para a lama e a profundeza. Todos querem chegar ao trono: esta é sua loucura – como se a felicidade estivesse no trono! Com frequência a lama se acha no trono – e, também com frequência, o trono se acha na lama. Loucos me parecem todos eles, macacos trepadores e seres febris. Mau cheiro tem para mim seu ídolo, o frio monstro: mau cheiro têm todos eles para mim, esses idólatras. (…) Na verdade, quem pouco possui, tanto menos será possuído: louvada seja a pequena pobreza!” (Livro I, Do Novo Ídolo, pg. 50).
Zaratustra prefere a floresta e os rochedos, ainda que tenha que estar solitário, ao mercado onde “zumbem as moscas venenosas”. Sua atitude, neste quesito, se assemelha à de Thoreau, que prefere uma vida frugal em seu bosque de Walden à febril idolatria do vil metal. Também a frase de Zaratustra “quem pouco possui, tanto menos será possuído” lembra a violenta crítica contra a sociedade de consumo norte-americana realizada por Tyler Durden, personagem de Clube da Luta, de David Fincher: “the things you own end up owning you”.
Se Zaratustra convida os homens à uma nova grandeza, esta decerto não tem nada a ver com o acúmulo de capital ou a busca febril por fama: “Longe do mercado e da fama se passa tudo que é grande: longe do mercado e da fama habitaram, desde sempre, os inventores de novos valores.” (Livro I, Das Moscas do Mercado, p. 52).
Outra etapa na superação da forma atual do homem, além do ultrapassamento desta idolatria pelo dinheiro, consiste em libertar-se de uma mentalidade que concebe também a virtude como conectada a recompensas e castigos. Zaratustra ri daqueles que querem ser virtuosos e ser pagos por isso:
“Ainda quereis ser pagos, ó virtuosos! Quereis recompensas pela virtude, céu pela terra e eternidade por vosso hoje? E agora vos irritais comigo por ensinar que não existe um tesoureiro pagador? E, em verdade, não ensino sequer que a virtude é sua própria recompensa. Ah, esta é a minha tristeza: no fundo das coisas foram mentirosamente introduzidos a recompensa e o castigo – e agora também no fundo de vossas almas, ó virtuosos!” (Livro II, Dos Virtuosos, p. 89)
O que está em jogo neste discurso de Zaratustra é a necessidade de superação de um ideário que concebia um Deus que recompensava ou punia os homens por suas virtudes e vícios; morta a crença neste “tesoureiro pagador”, torna-se necessário reconstruir a virtude sobre outras bases, já que para a “humanidade superior” do futuro, libertada da fé nesta divindade justiceira, não haverá mais nem a esperança de retribuição transcendente, nem o temor de uma punição infernal.
Estaria Nietzsche, portanto, fazendo um elogio quase kantiano de uma virtude desinteressada? Também não, pois o próprio Zaratustra diz estar cansado daqueles que dizem que “para uma ação ser boa, é preciso ser desinteressada”. “Ah, meus amigos! Que o vosso ser esteja na ação como a mãe no filho…” (Livro II, p. 91)
A virtude da taça que transborda, do Sol que prodigaliza seus raios, da abelha que distribui seu mel, não necessita de motivações como o medo ou a esperança, mas nasce naturalmente de uma certa super-abundância vital em que as dádivas – as canções, os poemas, as ideias iluminadoras… – jorram como um chafariz. O desinteresse não é um valor estimado por Zaratustra, mas sim uma vontade forte, criadora, “leonina”, que deseja gerar frutos como uma mãe deseja filhos.
Os sábios e os virtuosos não devem servir às superstições do povo: o “espírito livre” com frequência será “odiado pelo povo”, arredio à plebe, considerado como anti-social, incompreendido pelas multidões. O espírito livre, “inimigo dos grilhões, o não adorador, o que habita as florestas”, não é uma criatura gregária, mas muito mais uma ovelha que desgarra do rebanho, alguém que procura trilhar um caminho independente, buscando a verdade sem se submeter a autoridades ou se atemorizar com proibições.
Zaratustra ama o homem veraz – “assim chamo àquele que vai para desertos sem deuses e que partiu seu coração venerador. (…) Livre da felicidade do servo, redimida de deuses e adorações, destemida e temível, grande e solitária: assim é a vontade do veraz. No deserto moraram desde sempre os verazes, os espíritos livres, como senhores do deserto.” (Livro II, Dos Sábios Famosos)
Há em Assim Falou Zaratustra, portanto, uma meditação constante sobre a solidão, tida como necessária para um certo cultivo espiritual imprescindível para que o homem se supere. Zaratustra, o sem-pátria, o extemporâneo, chega a entoar cânticos em louvor à solidão, como o célebre “Solidão, pátria minha!” E a solidão lhe responde: “Ó Zaratustra, sei de tudo: no meio de muitos homens estavas mais abandonado, único que és, do que jamais estivestes comigo!” (Livro III, O Regresso, p. 174).
Após sua tentativa de retornar aos homens e iluminá-los com seus discursos e canções, Zaratustra acaba se cansando da vã tagarelice dos homens e prefere retornar para sua caverna, para suas caminhadas no meio da natureza, rodeado por um “venturoso silêncio”: “lá embaixo – ali tudo fala e nada é ouvido. Alguém pode anunciar sua verdade com sinos: os merceeiros do mercado lhe cobrirão o som com o tilintar dos níqueis!” (III, p. 176)
Publicado em: 13/04/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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